segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Geopolítica: Lições do separatismo catalão e da crise espanhola


A convocação do referendo sobre a secessão da Catalunha foi o clímax de um desastrado processo político. Artur Mas i Gavarró, o presidente da Generalitat (o nome do governo dessa região autônoma), era um líder catalão moderado, que se elegeu com as simpatias do Partido Popular (de linha conservadora e que hoje governa Espanha). Surpreendentemente, ele convocou eleições antecipadas e levou milhares de catalães às ruas, com as bandeiras locais, em favor da separação do Reino espanhol. A consulta ao povo da Catalunha sobre a separação foi o último gesto de Mas i Gavarró. Invocando a indissolubilidade nacional, prevista no artigo 2º da Constituição de 1978, o primeiro-ministro Mariano Rajoy declarou que tomará as medidas necessárias para impedir o referendo.

A grave crise econômica espanhola, que mais parece ser um microcosmo da realidade europeia, pôs luzes sobre o descalabro econômico-financeiro a que chegaram as chamadas regiões autônomas do Reino de Espanha. A Constituição de 1978 declara-se baseada na “unidade indissolúvel da nação espanhola, pátria comum e indivisível do povo espanhol”, mas “reconhece e garante o direito à autonomia das nacionalidades e regiões que a compõem e a solidariedade entre elas” (art. 2o). O processo de conversão de províncias em “comunidades autônomas” é descrito no artigo 143, que estabelece uma série de pressupostos históricos, culturais e jurídicos para esse fim. As competências das regiões autônomas, descritas no artigo 148, são muito variadas e importantes, compreendendo a alteração de fronteiras municipais, a proteção ambiental, a assistência social, a saúde, a promoção cultural, o ensino de língua e de religião, o turismo, o lazer e a conservação de museus e bibliotecas.

Em razão do histórico de separatismo da Catalunha e do País Basco, no marco da redemocratização após a ditadura do generalíssimo Francisco Franco, a Constituição deferiu às regiões autônomas um poder de autodeterminação governativa inédito na história recente espanhola. No entanto, as lutas políticas entre os principais partidos, especialmente após a década de 1990, quando já consolidada a democracia, geraram um efeito colateral perverso: a bandeira da autonomia foi usada para conquistar votos.

O Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE), historicamente favorável à autonomia regional, fez inúmeras concessões aos políticos catalães (e de outras regiões). O Partido Popular (PP), herdeiro da direita não franquista, para não perder espaço, consentiu em outorgar maior liberdade fiscal. Como resultante dessa corrida, as unidades que não possuíam maiores pretensões autonômicas passaram a agitar a bandeira separatista, pois perceberam que o jogo favorecia aos mais radicais. Quanto maior a pauta de reivindicações e de causas históricas para se queixar do “governo central”, maiores seriam os ganhos nessa chantagem institucional. Exemplo disso é o caso de Navarra, a mais leal das regiões espanholas, a única “comunidade foral” do Reino (porque sua autonomia decorre de direitos medievais, reconhecidos por fueros, desde 1841). Até mesmo os navarrenses cogitaram em assumir uma postura mais independente, a fim de não serem excluídos das concessões feitas às unidades mais agressivas em seu discurso contra o Estado espanhol.

Em resumo: As regiões autônomas encontram-se deficitárias e necessitam do resgate bilionário do governo central, que, por sua vez, depende da ajuda financeira europeia. A Catalunha, extremamente endividada, pediu auxílio à Madrid, mas se recusa a adotar medidas saneadoras. Um líder pouco responsável, para se dizer o menos, como Artur Mas, colocou o povo na rua contra a unidade espanhola. E a situação saiu do controle.

Os espanhóis vivem algo bem conhecido dos brasileiros: governos locais com dívidas impagáveis; trens da alegria (de muitos anos) no serviço público; excesso de servidores e gastos desnecessários em obras superpostas ou inúteis. À beira-mar, gastaram-se recursos para se construir piscinas olímpicas. Museus em pequenas cidades têm mais servidores públicos do que visitantes em um mês. Na luta por poder entre o governo local e o de Madrid, há ainda a superposição de servidores e de órgãos nacionais e autônomos. Pagam-se dois servidores para se fazer a mesma coisa.

É simplesmente triste observar a situação atual de Espanha. A sociedade vive um momento de divisão. Em grande medida, isso foi alimentado por três causas bem definidas, além, é óbvio, da gastança do dinheiro fácil da União Europeia e da irresponsabilidade fiscal das regiões autônomas. Convém destacá-las, até mesmo para servir de reflexão aos brasileiros, que entram agora em uma nova fase de desenvolvimento e a um período de reivindicações sociais, culturais e étnicas que, se não for bem estruturado, em uma geração, poderá trazer ao país uma série de problemas que jamais se experimentou nestas terras, e que definitivamente não carecem de ser importados.

A primeira causa está na mediocridade e no oportunismo de seus líderes recentes. Nem esquerda, nem direita escapam desse juízo. Mariano Rajoy (PP), atual presidente do Conselho de Ministros, e José Luís Zapatero (PSOE), seu antecessor, são exemplos dessa falta de grandeza na condução dos negócios de Estado. Zapatero não pensou duas vezes em lançar a sociedade espanhola em conflitos internos, por meio de ações e leis que não refletiam o pensamento nacional, mas apenas de um grupo. Para completar, conduziu a nação ao caos econômico que deflagrou a crise atual. O galego Rajoy, que foi eleito em larga medida pelo voto de protesto contra o fracasso do PSOE, em pouco tempo, gastou seu capital político e não conseguiu mostrar a que veio. Seu imobilismo e sua indecisão geraram as revoltas recentes e abriram caminho para aventureiros como Artur Mas.

A segunda causa é maneira como se cuidou das divisões regionais. A guerra de interesses das regiões autônomas foi transposta para o cenário nacional. A bandeira pró-autonomia, que sempre deu votos ao PSOE, trouxe consigo a ruína orçamentária. Se o PP não entrasse nessa corrida, perderia as eleições.

Algo semelhante ocorreu no Reino Unido, na administração Tony Blair, que deu autonomia (quase total) à Escócia e (parcial) ao País de Gales. Em 1998, Blair fez passar o Scotland Act, que criou um Poder Executivo e um Parlamento escocês e deu ao governo local fortes poderes fiscais. Desde então, o movimento separatista cresceu de maneira exponencial. O ensino do “escocês”, o dialeto local, tem sido incrementado nas escolas, à semelhança do catalão. Dissemina-se o discurso secessionista nos colégios e nos ambientes culturais. Em 2012, Alex Salmond, primeiro-ministro da Escócia, anunciou a realização de um plebiscito sobre a independência de seu país para o ano de 2014.

David Cameron, atual primeiro-ministro britânico, do Partido Conservador, aprovou este ano a emenda ao Scotland Act, com maior transferência de poderes constitucionais à Escócia. Essa emenda é tida como a maior devolução de poderes estatais a uma nação do Reino Unido desde seu surgimento como Estado unificado no século XVIII. Segundo analistas, essa foi a maneira encontrada pelo governo para enfraquecer o ímpeto separatista escocês. A se ver o exemplo espanhol, os resultados serão inúteis. E, no caso britânico, a falta de senso histórico e a postura de estadista é um mal comum, tanto a trabalhistas, quanto a conservadores, na realidade contemporânea.

A terceira causa está no enfraquecimento da figura da monarquia na Espanha. O rei, segundo o artigo 56 da Constituição de 1978, é o símbolo da unidade e da permanência do Estado espanhol. Sua centralidade como elemento de união nacional é anterior à Constituição. Juan Carlos I, após a morte do ditador Francisco Franco, atravessou o país em nome de sua reconstrução democrática. Falou em catalão na Assembleia Legislativa daquela Generalitat e defendeu o renascimento espanhol. Com a tentativa de golpe em 1982 e sua postura firme em favor da Constituição, ele se legitimou definitivamente como chefe de Estado.

Hoje, porém, seu alheamento das questões de Estado, os escândalos envolvendo seu genro (o basco Inãki Urdangarin) e a perda de referências da sociedade espanhola, cada vez mais dividida internamente, parecem ter convertido o monarca em um agente sem a expressão necessária para debelar essa terrível crise. Não é de se estranhar que, na última semana, os manifestantes pediram uma nova constituinte, a renúncia do primeiro-ministro e a abdicação do rei de Espanha. Esse último pedido é inédito na vida democrática espanhola pós-1978.

A pretensão separatista catalã tem um curioso argumento jurídico e histórico. O último rei austríaco de Espanha (da Casa de Habsburgo) foi Carlos II, o Amaldiçoado. Fraco e sem condições para o cargo, ele conduziu seu país à ruína. Ao falecer, sem deixar descendentes, iniciou-se a famosa Guerra de Sucessão Espanhola (1702-1714), entre os Habsburgos e a Casa de Bourbon, reinante na França. Venceram os Bourbons e foi designado como rei de Espanha o príncipe d’Anjou, Felipe, irmão do Rei Sol, Luís XIV.

A Catalunha, nessa guerra, ficou ao lado dos Habsburgos. A derrota da causa austríaca e a ascensão dos Bourbons (dinastia a qual pertence o atual rei Juan Carlos I) implicou, sob o novo regime, uma reorganização jurídica da Espanha, com os Decretos de Nueva Planta, de 1713 a 1715. A Catalunha, que era parte do antigo Reino de Aragão, perdeu sua autonomia histórica, assim como todas as demais partes do Reino de todas as Espanhas.

Esse marco jurídico de 1715 é invocado hoje pelos parlamentares catalães como causa de sua submissão ao governo central. Eles pedem sua revogação. Em um duríssimo debate no Congresso de Deputados, na última semana, os deputados do PSOE e do PP rejeitaram essa tese. Um deles afirmou que os Decretos de Nueva Planta encontravam-se revogados desde a Constituição de 1978, bem assim toda a legislação franquista que lhe fosse incompatível. A única exceção seria Navarra, que se favorece de ressalva da Disposição Adicional Primeira da Constituição. Agora, só valeriam os dispositivos constitucionais sobre as regiões autônomas e a indissolubilidade do Estado nacional, o que tornava írritos quaisquer atos tendentes a dividir o país.

O Brasil não vive hoje a experiência de movimentos secessionistas. Mas, é interessante extrair da crise espanhola algumas lições e também fazer algumas comparações com a visão do Supremo Tribunal Federal sobre os movimentos de autonomia intraestadual (o separatismo de regiões dos Estados-membros) e sobre os processos de controle das finanças locais.

* Advogado da União

Fonte: Conjur

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